quinta-feira, 24 de abril de 2014

DAVID UIP: A emenda pior do que o soneto

A municipalização do SUS é correta, mas sua execução, na prática, é um erro. A conta da saúde para as prefeituras está cada vez mais indigesta
Quando se tenta consertar algo e o resultado prejudica ainda mais o problema, diz-se que a emenda ficou pior do que o soneto. Na saúde pública brasileira, temos acompanhado episódios que remetem ao ditado popular, causando preocupações e incertezas.
Os Ministérios da Saúde e da Educação têm incentivado municípios a construírem faculdades de medicina, não raro em locais sem nenhum respaldo de hospitais e de ambulatórios, abrindo-se mão do necessário perfil de formação acadêmica para qualificar em nível de graduação e pós-graduação os futuros profissionais. Além de exigir investimento, a situação aumenta a pressão financeira para custear o funcionamento dessas estruturas, onerando o gestor local e tentando envolver o Estado.
A municipalização do SUS (Sistema Único de Saúde) é correta, mas sua execução, na prática, é um erro. Os municípios deveriam estar se preocupando com programas de prevenção e promoção da saúde, com o reforço da atenção primária e serviços essenciais, capazes de solucionar 80% dos problemas de saúde da população. Diversas administrações municipais, porém, constroem hospitais que terão dificuldades para manter posteriormente e ainda são obrigadas a bancar os custos do funcionamento de unidades de pronto-atendimento.
Como consequência, a conta da saúde para as prefeituras está cada vez mais indigesta. Para se ter uma ideia, em 2000, o Ministério da Saúde era responsável por 58,5% das despesas proporcionais com saúde, enquanto os Estados respondiam por 20,3% e os municípios, 21,2%. Dez anos depois, a participação da União no financiamento da saúde caiu para 44,8%, a dos Estados subiu para 26,9% e dos municípios, 28,3%.
No Estado de São Paulo, a disparidade é ainda maior em relação à média nacional. Em 2000, os repasses federais para a saúde representaram 39%. Governo do Estado e municípios responderam por 29% e 32%, respectivamente. Em 2010, a União repassou 27,8% do total, enquanto Estado respondeu por 31,1% e os municípios paulistas responderam por 41,1%.
Além de equacionar o conhecido problema do financiamento, é fundamental reorganizar o sistema, que, embora gigante e com números que impressionam na assistência, hoje está fragmentado e sem rumo.
Para proporcionar maior eficiência e resolutividade aos hospitais públicos paulistas, especialmente no que se refere às Santas Casas e hospitais filantrópicos, a Secretaria de Estado da Saúde, além de fazer um aporte extra-SUS de R$ 535 milhões, o dobro dos anos anteriores, está reclassificando os serviços hospitalares conforme sua vocação e perfil. Esse modelo deverá ser estendido aos demais serviços hospitalares, municipais e estaduais.
Os hospitais de apoio, aqueles menores, receberão recursos do governo para garantir assistência a casos mais simples. A média complexidade deverá estar assegurada nos serviços classificados como estratégicos, que vão receber 40% a mais do que o SUS federal paga. E os hospitais estruturantes, que terão do Estado 70% a mais, deverão se dedicar exclusivamente à alta complexidade, como cirurgias cardíacas, transplantes, neurocirurgia e tratamento oncológico, entre outros.
A reorganização do sistema passa, ainda, por dar sentido e uso a 168 hospitais com até 50 leitos e por integrar 88 municípios que possuem um único equipamento de saúde, vital para o atendimento da população local, mas desconectado da malha assistencial.
Não há dúvida de que o SUS, umas das grandes conquistas do povo brasileiro, responsável por inúmeras ações de sucesso, deve ser repaginado com criatividade e inteligência. DAVID UIP, 62, médico infectologista, é secretário de Estado da Saúde de São Paulo.
Folha, 24.04.2014

terça-feira, 22 de abril de 2014

Atraso clínico

Um dilema ronda o Estado, o dilema do controle.
Uma função precípua do poder público é fiscalizar a atuação de agentes privados, sobretudo aquelas atividades capazes de provocar danos irreversíveis. Por exemplo, a construção de uma hidrelétrica, o teste de uma droga nova.
Para cumprir esse imperativo, autoridades se valem de ferramentas burocráticas. Exigem que os interessados apresentem estudos de impacto, sigam protocolos específicos, exibam certificações e se submetam ao crivo de especialistas reunidos em agências e conselhos técnicos.
Não é fácil, no entanto, acertar o nível ótimo de controle. Se a burocracia é relapsa, a segurança fica comprometida; se aperta muito o cerco, atividades legítimas e desejadas são inibidas.
No Brasil, a burocracia não raro consegue a proeza de cair nos dois extremos. Um bom exemplo do pior dos mundos está o campo dos ensaios clínicos, isto é, do teste de remédios novos.
Tal mercado movimenta, globalmente, cerca de US$ 120 bilhões anuais. O Brasil recebe 2,32% disso (15ª colocação), o que contrasta com o fato de ser o sétimo maior consumidor de medicamentos.
O Brasil teria condições de se dar bem nesse segmento. Conta com pessoal qualificado, centros médicos de excelência e uma população grande e com muita variação genética.
A razão central para o desempenho débil é a lentidão da burocracia para conceder licenças de pesquisa. Por aqui, além da ineficiência basal da máquina burocrática, ainda subsiste uma cultura paranoica diante dos grandes laboratórios, que levou a uma nada razoável duplicação de processos.
As autorizações precisam passar pelo CEP (Conselho de Ética em Pesquisa), normalmente ligado ao próprio centro, que as encaminha à Conep (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa). Em paralelo, aspectos de segurança são avaliados pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
Resultado: o tempo médio para obter uma autorização é duas a três vezes maior que o de países como Estados Unidos e nações da União Europeia, cujos níveis de segurança são provavelmente melhores que os brasileiros.
A lista de prejudicados pelo marasmo burocrático não é pequena. Perdem a economia, que deixa de abocanhar uma fatia maior desse mercado, a ciência nacional, alijada de um nicho relevante, e pacientes individuais, que poderiam ter acesso mais rápido e gratuito a novos tratamentos.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

MARK WILSON: Governo não deve gastar com remédios sem evidência


OPINIÃO É DE PRESIDENTE DE REDE QUE AVALIOU O TAMIFLU
CLÁUDIA COLLUCCIDE SÃO PAULO
A aplicação da medicina baseada em evidências está sendo retardada porque médicos e estabelecimentos de saúde em muitos países, inclusive o Brasil, não querem ver suas experiências e julgamentos questionados.
É o que diz o inglês Mark Wilson, presidente da Cochrane Collaboration, uma rede de cientistas independentes que investiga a efetividade de remédios e que, na última semana, provocou polêmica internacional envolvendo o antiviral Tamiflu.
Uma revisão de estudos da Cochrane concluiu que a droga, indicada pelas OMS (Organização Mundial da Saúde), não evita a disseminação da gripe nem diminui complicações. Só reduz a persistência dos sintomas de sete dias para 6,3 dias em adultos.
Neste ano, a Cochrane desenvolverá uma lista de 200 assuntos prioritários para ajudar os formuladores de políticas de saúde, médicos e pesquisadores a tomar decisões com base na medicina de evidências. A seguir, trechos da entrevista à Folha.
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Folha - Uma revisão da Cochrane demonstrou a baixa eficácia do Tamiflu, mas a OMS considera o remédio essencial. Isso não provoca uma certa confusão?

Mark Wilson - A Cochrane chegou às suas conclusões sobre os benefícios e malefícios do Tamiflu com base em um esforço extraordinário de análise do nosso time. A revisão foi baseada em dados que estão disponíveis para quem quiser avaliá-los e fazer sua própria análise. Esperamos que a OMS reconsidere a sua orientação sobre o uso de Tamiflu com base nessa nossa última revisão.

Como a Cochrane quer reduzir o fosso que existe entre as pessoas comuns e as evidências em saúde?
Desenvolvemos várias ferramentas que ajudam os consumidores de saúde a ter acesso às evidências da Cochrane para que tomem decisões informadas sobre a sua saúde. Uma deles é o site http://summaries.cochrane.org, disponível em português.
Cada uma das 5.300 revisões da Cochrane tem um resumo que ajuda os leitores comuns a entender o conteúdo e as conclusões da revisão, e estamos desenvolvendo novas maneiras de fazer as implicações das opiniões mais claras e inteligíveis.

Qual é o principal desafio do estabelecimento da cultura da saúde baseada em evidências nos países em desenvolvimento, como o Brasil?
Até pouco tempo atrás, as pessoas tinham de fazer julgamentos com base em pouca evidência. É preciso tempo para as pessoas assimilarem esse novo conhecimento que sabemos ser verdadeiro. Mas o processo é demorado porque médicos e estabelecimentos de saúde em muitos países, incluindo o Brasil, não querem ver sua experiência e julgamento questionados por novas provas.
Existe uma cultura e prática da medicina baseada em eminência ("faça isso porque estou dizendo que é bom") em vez da medicina baseada em evidências ("faça isso porque está comprovado que funciona"). A melhor prática médica combina experiência e conhecimento do que está provado que funciona.

Não há evidência científica de que a homeopatia funcione, mas a especialidade é reconhecida pelos conselhos médicos no Brasil e promovida pelo Ministério da Saúde. Qual é a sua opinião?
Eu não posso falar sobre o julgamento do conselho de medicina no Brasil, mas as revisões da Cochrane sobre o assunto sugerem que não há evidências de que a homeopatia é mais eficaz do que tomar um placebo.

Qual é o peso da indústria farmacêutica na promoção da cultura do cuidado de saúde baseado em evidências? Como lutar contra essa influência?
A rede Cochrane é uma organização totalmente independente, e essa é uma das razões pelas quais consumidores, médicos e governos confiam em nós.
A indústria farmacêutica trouxe grandes avanços nos cuidados à saúde por meio de medicamentos e equipamentos que desenvolveu, mas precisamos lembrar que a principal motivação dela é ganhar dinheiro e se manter no mercado.
Está ficando mais difícil e mais caro desenvolver novas drogas que ofereçam benefícios adicionais comprovados em relação aos remédios já disponíveis. Quando há dados que mostram que novas drogas não oferecem mais benefícios do que malefícios ou que não oferecem benefício extra, há incentivo para que as empresas não compartilhem essas informações. A Cochrane acredita que sistemas e regulações devem existir para nos proteger disso.

Sistemas de saúde em todo o mundo estão enfrentando dificuldades quanto ao financiamento. A adoção da medicina baseada em evidências é uma forma de reduzir custos?
Governos e outros responsáveis pela saúde deveriam usar as evidências da Cochrane para oferecer cuidados que tenham melhor custo-benefício. Por que desperdiçar dinheiro em medicamentos, equipamentos e processos que não funcionam? Pacientes, médicos e governos deveriam se perguntar como eles sabem que determinada droga funciona e se ela tem um bom custo-benefício. Folha, 17.04.2014.
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Sinais trocados na saúde: Governo e parlamentares negam mais recursos ao SUS, mas entregam a ANS a um setor que assiste, mal, apenas uma parcela da população

Lugar de conflitos de interesse, a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) se vê diante de mais um escândalo.
Após a queda de um diretor da agência por ter omitido que trabalhou para empresas de planos de saúde, a presidente Dilma Rousseff indicou a posto semelhante o atual presidente da CNS (Confederação Nacional de Saúde), que aguarda sabatina no Senado.
A entidade representa hospitais, clínicas, laboratórios, operadoras de planos de saúde, e o indicado foi, no passado, presidente de empresa que atua na saúde suplementar.
Mais grave é a posição do possível novo diretor, revelada neste mesmo espaço daFolha, em 2010: "Questionamos no Supremo Tribunal Federal (STF) a constitucionalidade do artigo 32 da lei dos planos de saúde (lei nº 9.656/98), que prevê o ressarcimento ao SUS caso o beneficiário do plano seja atendido pelo sistema público".
Pela lei, cabe à ANS identificar os pacientes atendidos no SUS, notificar as empresas sobre os valores a serem ressarcidos e cobrar a devolução. Em uma única reunião, em março de 2014, a diretoria da ANS deliberou sobre 99 recursos de planos de saúde contra o ressarcimento ao SUS.
O conflito anunciado envolve tema sensível à ANS. Já em 2009, o Tribunal de Contas da União alertou que a agência dá prejuízo aos cofres públicos, pois não identifica corretamente o que deve ser ressarcido e é lenta para realizar as cobranças, jogando os processos à prescrição.
Por isso, o volume do ressarcimento é insignificante. De 2001 a 2013, retornaram ao SUS apenas R$ 447 milhões. O SUS realiza por ano 11 milhões de internações, das quais pelo menos 200 mil são de clientes de planos de saúde, custo que chega a R$ 1 bilhão, sem contar os procedimentos ambulatoriais que, inexplicavelmente, não são processados pela ANS.
A Câmara dos Deputados e o Senado acabaram de aprovar redução do valor das multas dos planos de saúde, um incentivo às restrições de cobertura, infração mais cometida, piorando a situação atual, em que os pagamentos não chegam a 20% dos valores das sanções timidamente aplicadas pela ANS.
Em 2013, com o apoio do governo, a medida provisória nº 619 já havia livrado os planos de cobrança bilionária do PIS e Cofins. Tal vantagem tributária soma-se à renúncia fiscal no cálculo de Imposto de Renda de pessoas físicas e jurídicas, que sempre beneficiou os planos de saúde.
E, ainda, passaram a ganhar do BNDES linhas de crédito para ampliação de suas redes hospitalares. A ANS quer permitir que deem de garantia aos empréstimos a chamada reserva técnica --fundo obrigatório por lei para que, em caso de falência, as operadoras não deixem na mão os consumidores.
O subfinanciamento público é o maior algoz da saúde no Brasil. O gasto per capita do SUS, para toda a população, é de R$ 45 por mês. A receita dos planos de saúde chega a R$ 160 por pessoa, o que rendeu às operadoras R$ 93 bilhões em 2013.
Governo e parlamentares negam mais recursos ao SUS, sistema de todos os brasileiros, mas concedem incentivos econômicos e entregam a agência reguladora a um setor que assiste --e mal-- apenas uma parcela da população.
Candidatos sempre defendem o SUS. Mas, na hora da doença, nunca querem se tratar nos mesmos locais onde tentarão ser atendidos os eleitores que desejam conquistar. E, na campanha, terão dinheiro farto dos planos privados.
A população que foi às ruas exigir serviços públicos de saúde de qualidade, o povo que aponta a saúde como o maior problema do Brasil talvez tenha percebido que os sinais estão mesmo trocados.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Hospital da Clínicas: Um hospital de superlativos

O Hospital das Clínicas buscará parceria pioneira com a iniciativa privada que permitirá ampliar ainda mais a assistência gratuita do SUS
Daqui a 30 anos, quando o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP completar seu primeiro centenário, o cenário da saúde pública terá certamente se transformado, seguindo o dinamismo inerente ao SUS (Sistema Único de Saúde).
Hoje, as carências são conhecidas. Subfinanciamento, falta de resolutividade na atenção primária, hospitais e ambulatórios que não cumprem efetivamente seu papel no atendimento secundário. São fatores que levam invariavelmente os hospitais de ensino, com assistência terciária, a concentrar uma demanda excessiva.
O HC-FMUSP, que completa 70 anos de existência no próximo 19 de abril, é procurado por pacientes de todo o Brasil em razão de sua qualidade e excelência assistencial. Trata-se de uma população que conhece e, principalmente, confia no hospital. Muitas vezes, só nele.
Maior complexo hospitalar da América Latina, o HC desde cedo se tornou referência nacional em assistência, ensino e pesquisa. Uma trajetória que pode ser traduzida nas histórias de pacientes, médicos, residentes e colaboradores. E que, ao mesmo tempo em que nos orgulha, nos traz a enorme responsabilidade de seguirmos adiante, com ambição em relação ao futuro e zelo para com o nosso passado.
Dentro da rotina do complexo nos acostumamos com seus números superlativos. São cerca de 250 mil pacientes por mês circulando nos oito institutos do HC --entre eles o fundador Instituto Central e, mais recentemente, o Instituto do Câncer do Estado de São Paulo Octavio Frias de Oliveira-- e mais de 20 mil colaboradores se dedicando dia e noite para que o atendimento ocorra sempre da melhor maneira.
Anualmente, são feitas aproximadamente 1,7 milhão de consultas ambulatoriais, 320 mil atendimentos de emergência, 40 mil cirurgias e mais de 1 milhão de exames de diagnóstico por imagem.
Paralelamente à assistência, o hospital-escola da FMUSP é também responsável por formar muitos dos melhores quadros da medicina nacional. Nossos alunos e residentes ajudam a disseminar o conhecimento produzido no mundo acadêmico em unidades de saúde de todo o país. As pesquisas desenvolvidas no HC ajudam a levar a medicina para patamares nem sequer imaginados há poucos anos.
Os desafios, contudo, são igualmente enormes. O próprio HC não pode nem deve se acomodar como instituição. E não irá. Assim, na esteira das comemorações de suas sete décadas, lançamos o projeto HC 70+30, antecipando o futuro.
Focando o acolhimento diferenciado e a construção de novas áreas --algumas já em andamento, como o instituto de álcool e drogas e o novo hospital de Suzano--, esse projeto também prevê a reurbanização do complexo, em um plano audacioso que, quando concluído, oferecerá aos pacientes e colaboradores um novo espaço de convivência e circulação, mais bonito e acessível.
O Hospital das Clínicas buscará parceria pioneira com a iniciativa privada que, acredito, irá se tornar um exemplo para futuros empreendimentos dessa magnitude e que permitirá ampliar e aprimorar ainda mais a assistência gratuita aos usuários do SUS.
Atualmente, mais de R$ 220 milhões já estão sendo investidos em novas obras para o complexo pelo governo do Estado de São Paulo.
Nessa data, quero homenagear todos aqueles que ajudaram a construir o Hospital das Clínicas da FMUSP. Desde os operários que deram início às primeiras obras, em 1938, passando por cada professor, médico, enfermeiro, cada colaborador, cada paciente e cada voluntário. E quero brindar àqueles que seguirão nessa jornada em defesa de um Hospital das Clínicas que, seja aos 70, aos 90 ou aos 100, sempre estará à frente do seu tempo.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

ODED GRAJEW: Crime contra a saúde e o bolso


Nenhum governo até hoje conseguiu colocar o interesse econômico e a saúde dos brasileiros acima do lucro da indústria farmacêutica
Estima-se que os brasileiros gastem desnecessariamente cerca de R$ 13 bilhões por ano com medicamentos! Você certamente já se confrontou com a seguinte situação: foi a uma farmácia para comprar um certo número de pílulas receitadas por seu médico e teve que levar uma quantidade maior por causa da embalagem oferecida pelo fabricante.
Os remédios armazenados na casa das pessoas oferecem um risco à saúde da população: podem ser ingeridos por crianças ou reutilizados inadvertidamente numa outra ocasião com data de validade já vencida, provocando graves intoxicações. Além disso, são frequentes os episódios em que, por falta de recursos, muitos compram uma parte do medicamento prescrito e, ao primeiro sinal de melhora, interrompem o tratamento, provocando inevitáveis danos à saúde.
Justamente para evitar problemas como esses, os países desenvolvidos e muitos outros obrigam os fabricantes e as farmácias a venderem remédios fracionados, isto é, a comercializarem o número exato de pílulas receitadas. Se o paciente apresenta uma receita para tomar três doses de antibióticos diárias durante cinco dias, a farmácia lhe vende 15 comprimidos. Todas as multinacionais instaladas no Brasil agem dessa forma em muitos países, inclusive nos seus de origem.
Durante um ano, em 2003, fui assessor especial do ex-presidente Lula. Apresentei a ele a proposta de introduzir no Brasil a obrigatoriedade do remédio fracionado, mostrando as enormes vantagens econômicas e de saúde para os brasileiros.
Lula, então, me deu razão e chegou a citar as palavras de sua mulher, Marisa, que se queixava das inúmeras caixas de remédio não utilizadas guardadas no armário do banheiro. Depois disso, o fracionamento passou a ser facultativo, mas não obrigatório.
Ao deixar o governo e reassumir a presidência do Instituto Ethos, tentei levar adiante a campanha pela introdução do remédio fracionado no Brasil. A indústria farmacêutica reagiu violentamente ameaçando retirar todos os fabricantes de remédios do quadro associativo do Ethos. Sugeri que fizéssemos uma coletiva de imprensa explicando os motivos dessa saída.
Em seguida, telefonei para o presidente da fundação Novartis na Suíça relatando o caso e perguntando se o discurso da responsabilidade social da empresa era realmente sério --isso porque a Novartis e outras multinacionais oferecem remédios fracionados em outros países, mas não o fazem no Brasil.
As ameaças contra o Instituto Ethos cessaram, mas o forte, rico e poderoso lobby da indústria farmacêutica contribuiu com mais de R$ 12 milhões nas eleições de 2010 e conseguiu impedir, até o momento, a obrigatoriedade do remédio fracionado no Brasil.
Nenhum dos governos até agora conseguiu enfrentar esse desafio de colocar o interesse econômico e a saúde dos brasileiros acima do lucro da indústria farmacêutica brasileira --que, aliás, é um dos maiores do mundo. Espero que este artigo sensibilize o governo e a sociedade para agirem contra esse crime hediondo que atinge diretamente o bolso e a saúde dos brasileiros.
Folha, 09.04.2014

terça-feira, 1 de abril de 2014

SAÚDE PARTIDA

País já gasta 8,9% do PIB com atendimento médico, mas de forma ineficiente; redução de desperdícios implica articular sistemas público e privado
O sistema de saúde do Brasil está doente. Há algo de errado com um serviço --ou serviços, porque vigora no país uma esquizofrênica partição entre o setor público e o privado-- avaliado por 62% da população como ruim ou péssimo.
Esse julgamento ensombrecedor se destaca na pesquisa Datafolha apresentada no Fórum a Saúde do Brasil, seminário da Folha realizado na semana passada. A saúde é o principal problema do país para 45% dos entrevistados.
É certo que o fulcro da ineficiência está no atendimento público do SUS, o Sistema Único de Saúde idealizado na Constituição de 1988. Dele dependem 73% dos brasileiros. Destes, mais da metade (53%) o considera ruim ou péssimo.
Os planos particulares gozam de avaliação mais favorável, com 44% de ótimo e bom. Mas a categoria regular tem a preferência de 42% dos conveniados. O salto no número de usuários, de 32,1 milhões para 50,3 milhões em dez anos, já parece afetar a qualidade.
O cerne dos problemas está na desigualdade do sistema dual. O SUS atende quase três quartos da população, mas se sustenta com 46% das despesas totais do país em saúde (8,9% do PIB, o que em 2013 equivaleria a cerca de R$ 430 bilhões). O setor privado (famílias e empresas) realiza 54% dos gastos e serve a 27% dos brasileiros.
A reação automática diante do subfinanciamento do SUS tem sido a defesa de mais investimento público, o que implica um impraticável aumento de arrecadação. Antes disso, há muita coisa por fazer.
Prossegue sem solução eficaz a questão do ressarcimento do SUS por serviços complexos e caros que presta a pacientes de planos privados. O certo seria criar um sistema automático de transferência de fundos, com base num cadastro central de conveniados.
Há, também, muita ineficiência e desperdício no SUS, como já apontaram estudos até do Banco Mundial. É preciso tapar esses drenos antes de despejar mais recursos do contribuinte no sistema.
Urge, ainda, impor limites --seja por meio de regulamentação, seja por meio de especialização de magistrados-- à proliferação de decisões judiciais que obrigam o SUS a custear tratamentos não homologados por ele, não raro em favor de pacientes particulares. Só a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo teve com isso um gasto adicional de R$ 905 milhões em 2013.
Por fim, há que enfrentar a desarticulação entre os serviços públicos e privados. O segundo resulta tão caro porque concentra seu atendimento em hospitais e exames complexos, inexistindo na prática um trabalho preventivo, para promover a saúde e não só para curar a doença.
O Programa de Saúde da Família, que partiu de 4.000 equipes em 1994 para 33 mil em 2012, deveria ser o foco dessa rearticulação. Seria preciso encontrar uma forma de integrar pacientes privados nesse sistema de atenção básica e remunerar o SUS por isso.
Não é só de uma boa dose de inovação tecnológica que a saúde do Brasil precisa para curar-se, mas também de inovação institucional. EDITORIAIS. editoriais@uol.com.br
Folha, 01.04.2014