segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Mais médicos (de saúde da família): Se o atual governo federal tivesse dado a prioridade devida ao Programa Saúde da Família, o Brasil não precisaria importar médicos

BARJAS NEGRI
TENDÊNCIAS/DEBATES
A fim de ampliar e melhorar a qualidade do atendimento da atenção básica em saúde, o Ministério da Saúde criou em 1994 o Programa Saúde da Família (PSF), em parceria com os municípios.
Cada equipe do PSF é composta, no mínimo, por um médico generalista, um enfermeiro, um auxiliar ou técnico de enfermagem e seis agentes comunitários de saúde. Posteriormente, acrescentou-se as equipes de saúde bucal.
No primeiro ano, foram implantadas 328 equipes, em 55 municípios. Pela sua importância para a atenção básica na saúde, o PSF foi ampliado notavelmente no governo Fernando Henrique Cardoso. No período em que foi ministro da Saúde, José Serra deu apoio, prioridade e recursos para que os municípios implantassem novas equipes, que cresceram dez vezes em cinco anos.
Em 2002, último ano da gestão FHC, quando eu já estava no comando do ministério, o PSF acumulara 16,7 mil equipes, que acompanhavam 55 milhões de pessoas, em 4.200 municípios. Esse exército de profissionais de saúde foi decisivo para derrubar a mortalidade infantil, ampliar a cobertura das vacinações e, em muitos casos, proporcionar a primeira consulta médica ou odontológica de milhões de pessoas.
O governo Lula deu sequência ao programa, chegando em 2010 a 31,6 mil equipes em 5.300 municípios. No governo Dilma Rousseff, esperava-se que o PSF recebesse mais apoio e recursos financeiros para continuar crescendo, mas não foi isso o que aconteceu. Em três anos, o PSF ganhou apenas 3.000 novas equipes, um aumento pífio.
A média anual de implantação de equipes do PSF no governo FHC foi de 2.046. No de Lula baixou para 1.870 e, no de Dilma, caiu ainda mais para 1.018, evidenciando o enorme retrocesso. Mantida a média dos governos anteriores, o PSF deveria ter 40 mil equipes em 2014, o que, ao que tudo indica, não irá ocorrer.
Incapaz de dar respostas corretas a essa fragilidade, o Ministério da Saúde, sob o comando de Alexandre Padilha, criou um programa-tampão denominado Mais Médicos, com a meta ambiciosa de contratar 13 mil médicos estrangeiros e nacionais, em detrimento ao programa estratégico de saúde da família que, segundo Adib Jatene, deveria atingir 52 mil equipes.
Até agora, foram contratados 6.600 médicos, 80% dos quais cubanos que, em algum momento, voltarão ao seu país de origem. São trabalhadores temporários. Ou seja, em vez de uma ação de caráter permanente em relação às equipes de saúde da família, compostas por nove profissionais, optou-se por um inepto remendo de um médico temporário estrangeiro.
Se o atual governo federal tivesse dado a prioridade devida ao PSF, com mais recursos aos municípios e incentivos permanentes à formação de mais médicos generalistas, o Brasil não precisaria importar médicos, e a saúde pública não seria tão mal avaliada pela população brasileira.
É precisamente a falta de profissionais da saúde voltados à atenção básica das famílias que tem sobrecarregado hospitais e serviços de diagnóstico e tratamento, bem como as redes de urgência e emergência nos municípios. Ao completar 20 anos, o PSF merecia mais.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

O neoescravagismo cubano (Mais Médicos)

IVES GANDRA DA SILVA MARTINS
TENDÊNCIAS/DEBATES
O governo federal não poderia aceitar a escravidão dos médicos cubanos que recebem 10% do que ganham os demais estrangeiros
A Constituição Federal consagra, no artigo 7º, inciso XXX, entre os direitos dos trabalhadores: "XXX "" proibição de diferença de salários, de exercício de função e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil".
O governo federal oferece para todos os médicos estrangeiros "não cubanos" que aderiram ao programa Mais Médicos um pagamento mensal de R$ 10 mil. Em relação aos cubanos, todavia, os R$ 10 mil são pagos ao governo da ilha, que os contratou por meio de sociedade intitulada Mercantil Cubana Comercializadora de Serviços Médicos Cubanos S/A. Pela cláusula 2.1 "j" desse contrato, receberia cada profissional no Brasil, apenas 400 dólares por mês, depositando-se em Cuba outros 600 dólares.
Em face da cláusula 2.1 "n", deve o profissional cubano guardar estrita confidencialidade "sobre informações não públicas que lhe sejam dadas". Pela cláusula 2.2 "e", deve abster-se de "prestar serviços e realizar outras atividades diferentes daquelas para que foi indicado", a não ser que autorizado pela "máxima direção da missão cubana no Brasil". Não poderá, por outro lado, "em nenhuma situação, receber, por prestação de serviços ou realização de alguma atividade, remuneração diferente da que está no contrato".
Há menção de vinculação do profissional cubano a um regulamento disciplinar (resolução nº 168) de trabalhadores cubanos no exterior, "cujo conhecimento" só o terá quando da "preparação prévia de sua saída para o exterior". Na letra 2.2 "j", lê-se que o casamento com um não cubano estará sujeito à legislação cubana, a não ser que haja "autorização prévia por escrito" da referida máxima direção cubana.
Pela letra 2.2 "q", só poderá receber visitas de amigos ou familiares no Brasil, mediante "comunicação prévia à Direção da Brigada Médica Cubana" aqui sediada. Pela letra "r", deverão manter "estrita confidencialidade" sobre qualquer informação que receba em Cuba ou no Brasil até "um ano depois do término" de suas atividades em nosso país.
Por fim, para não me alongar mais, pela cláusula 3.5, o profissional será punido se abandonar o trabalho, segundo "a legislação vigente na República de Cuba".
A leitura do contrato demonstra nitidamente que consagra a escravidão laboral, não admitida no Brasil. Fere os seguintes artigos da Constituição brasileira: 1º incisos III (dignidade da pessoa humana) e IV (valores sociais do trabalho); o inciso IV do art. 3º (eliminar qualquer tipo de discriminação); o art. 4º inciso II (prevalência de direitos humanos); o art. 5º inciso I (princípio da igualdade) e inciso III (submissão a tratamento degradante), inciso X (direito à privacidade e honra), inciso XIII (liberdade de exercício de qualquer trabalho), inciso XV (livre locomoção no território nacional), inciso XLI (punição de qualquer discriminação atentatório dos direitos e liberdades fundamentais), art. 7º inciso XXXIV (igualdade de direitos entre trabalhadores com vínculo laboral ou avulso) e muitos outros que não cabe aqui enunciar, à falta de espaço.
O governo federal, que diz defender os trabalhadores --o partido no poder tem esse título--, não poderia aceitar a escravidão dos médicos cubanos contratados, que recebem no Brasil 10% do que recebem os demais médicos estrangeiros!!!
Não se compreende como as autoridades brasileiras tenham concordado com tal iníquo regime de escravidão e de proibições, em que o Direito cubano vale --em matéria que nos é tão cara (dignidade humana)--, mais do que as leis brasileiras!
A fuga de uma médica cubana --e há outros que estão fazendo o mesmo-- desventrou uma realidade, ou seja, que o Mais Médicos esconde a mais dramática violação de direitos humanos de trabalhadores de que se tem notícia, praticada, infelizmente, em território nacional. Que o Ministério Público do Trabalho tome as medidas necessárias para que esses médicos deixem de estar sujeitos a tal degradante tratamento.

Pragmatismo para a saúde

JORGE ARBACHE, VICTOR GOMES E FABIANO BASTOS
A contribuição do setor privado para os serviços de saúde será tão maior quanto mais sofisticados forem os instrumentos regulatórios
É consensual a necessidade de melhora nos serviços de saúde no Brasil, com vistas a aumentar a qualidade de vida das pessoas e acelerar a produtividade e o crescimento econômico. O desafio já está sendo enfrentado, mas, preponderantemente, por meio de iniciativas focadas no aumento da eficiência e da oferta de profissionais de saúde.
Falta, no entanto, maior atenção a um problema fundamental: a infraestrutura do setor.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde, em 2010, o Brasil tinha 2,4 leitos para cada 1.000 habitantes, metade da média dos países da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Ocupamos posição modesta nesse indicador --84ª posição dentre 160 países. Ainda mais preocupante é a constatação de estagnação do número total de leitos de 2007 em diante, período marcado por forte crescimento da demanda por serviços de saúde no país.
Dois outros problemas também merecem atenção. Um é o baixo nível tecnológico das unidades de saúde --o número de equipamentos de ressonância magnética por milhão de habitantes é quase a metade daquele dos países da OCDE. O outro problema é a elevada disparidade regional em termos de leitos e equipamentos per capita.
A melhoria dos serviços de saúde vai requerer recursos novos. Mas, em vista da já elevada carga tributária e da falta de espaço fiscal, é pouco razoável esperar que o governo federal venha a aumentar de forma significativa o seu orçamento para o setor. A questão se torna ainda mais preocupante quando levamos em conta as condições fiscais dos governos subnacionais, o rápido envelhecimento da população e a ascensão da classe média --tudo o mais constante, aumentará o hiato entre a demanda e a oferta de infraestrutura de saúde ao longo dos próximos anos.
Se o deficit de infraestrutura é um problema, a necessidade de se buscar soluções cria oportunidades únicas para se modernizar o sistema de saúde. Nesse contexto, a questão que se coloca para debate no país não é se o setor privado deveria ou não participar mais ativamente das soluções, mas como ele participará.
Nessa eventual redivisão do trabalho, acreditamos que o governo deveria formular e indicar com clareza as políticas, as condições e as áreas em que o setor privado poderia aumentar a sua participação em complementação ao trabalho do serviço público.
Com isso, o poder público poderia redirecionar os seus recursos e esforços para áreas menos favorecidas e menos atrativas para os investimentos privados, como a região Norte e os municípios com elevado deficit de oferta de serviços de saúde, bem como focalizar em temas prioritários de saúde pública.
A contribuição do setor privado para a melhoria dos serviços de saúde será tão maior quanto mais inteligentes e sofisticados forem os instrumentos regulatórios, de monitoramento e de incentivos.
Mas a atração de recursos privados vai requerer a remoção de obstáculos que desencorajam os investimentos, entre os quais os impedimentos à participação do capital externo no setor. Com políticas adequadas, o capital privado poderá contribuir não apenas com financiamento e infraestrutura, mas também com novas tecnologias e práticas de gestão e de operação.
O aumento dos investimentos privados nos serviços de saúde terá benefícios que extrapolarão os limites do próprio setor. Favorecerá a indústria de medicamentos e de equipamentos médico-hospitalares, a pesquisa científica, bem como toda a gama de serviços e outras atividades que fazem parte da importante cadeia produtiva do setor.
A melhoria dos serviços de saúde requer reformas que já tardam. Apenas com senso de realismo e de pragmatismo encontraremos soluções sustentáveis e capazes de enfrentar os desafios que já se avizinham.
As opiniões aqui expressas não necessariamente representam as das instituições às quais os autores estão filiados