quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Obesidade já custa US$ 2 trilhões ao mundo, aponta consultoria: Segundo estudo, impacto econômico de quilos extras já se equipara aos de guerras e do fumo

OMS atribui 2,8 milhões de mortes por ano ao excesso de peso; países precisam coordenar ações, dizem analistas

DO "FINANCIAL TIMES"
A gordura virou questão econômica. Com quase um terço da população mundial sofrendo de sobrepeso ou de obesidade, o custo imposto pelos quilos extras já rivaliza com o de conflitos armados e o do fumo, indica pesquisa da consultoria McKinsey.
O desgaste que isso traz aos orçamentos de saúde deve crescer porque, a menos que as tendências atuais sejam revertidas, metade da população adulta mundial sofrerá de excesso de peso em 2015.
Em um relatório de 150 páginas publicado neste mês, a consultoria estima o custo mundial da obesidade em US$ 2 trilhões --ou 2,8% de tudo que a economia global produz.
A estimativa se baseia em perda de produtividade econômica, custos para os sistemas de saúde e investimentos necessários para mitigar o impacto da obesidade. O custo que conflitos armados, guerras e terrorismo impõem à economia mundial é de US$ 2,1 trilhões, e fica próximo do provocado pelo fumo.
Richard Dobbs, o principal autor do relatório, disse que "a obesidade é agora uma questão mundial crucial, requerendo uma estratégia abrangente de intervenção implementada em larga escala. Qualquer ação isolada provavelmente teria impacto pequeno".
Nos últimos dez anos, o problema da obesidade se espalhou das economias avançadas para países menos prósperos. Cerca de 2,1 bilhões de pessoas são obesas ou têm excesso de peso hoje --número 250% mais alto do que o de subnutridos.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) descreveu a obesidade como epidemia conectada a diversas doenças não transmissíveis, entre as quais diabetes tipo 2, câncer e doenças cardíacas.
Ela atribui 2,8 milhões de mortes anuais ao peso excessivo do corpo e, alguns meses atrás, reduziu sua recomendação quanto à proporção de açúcar na dieta dos adultos de 10% das calorias diárias para uma proporção de 5%.
COMBATE
O relatório da McKinsey estudou 74 medidas que estão sendo tomadas para combater a obesidade, das quais extraiu recomendações para o Reino Unido, onde 37% da população registra excesso de peso e 25%, obesidade.
A Public Health England, parte do departamento de saúde britânico, estimou que, se a obesidade fosse reduzida ao patamar de 1993, o Serviço Nacional de Saúde economizaria 1,2 bilhão de libras ao ano, a partir de 2034.
As recomendações da McKinsey incluem porções menores de fast food; reformulação dos alimentos processados; mudanças nas promoções de comida e bebida; investimento na educação de pais; adoção de refeições saudáveis nas escolas e locais de trabalho; e inclusão de mais exercícios no calendário de atividades das escolas.
Alison Tedstone, nutricionista chefe da Public Health England, disse que "o relatório é uma contribuição útil para o debate sobre a obesidade. A PHE vem declarando constantemente que mensagens educativas simplesmente não bastam para resolver o problema da obesidade".
"O excesso de peso e a obesidade são um problema complexo que requer ação em níveis individual e social, envolvendo indústria, governos locais e nacionais e a sociedade civil. Não há uma solução única e simples", disse. Folha, 27.11.2014.

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Cartel é prejudicial à saúde

O uso de cooperativas para disfarçar a organização de cartéis de médicos especialistas eleva os custos do SUS e dos convênios

O uso de cooperativas como disfarce para a organização de cartéis de médicos especialistas tem elevado os custos do SUS (Sistema Único de Saúde) e dos convênios médicos.
São muitas as vantagens do cooperativismo, mas elas degeneram em malefícios sociais quando a função principal dessas organizações for a de aglutinar médicos atuantes em certas regiões para impor honorários ou condições comerciais.
Nesse caso há uma transfiguração: cooperativas viram cartéis, tornando os serviços mais caros, escassos e de menor qualidade.
Alega-se que a criação de cartéis de médicos especialistas seria boa para compensar o poder de mercado das operadoras de saúde. Não é o caso. O grupo que tradicionalmente contrata médicos é amplo e desconcentrado: em setembro de 2014, 1.437 operadoras privadas --das quais 102 com mais de 100 mil beneficiários-- e o SUS precisaram de médicos para honrar suas obrigações contratuais ou constitucionais.
Dada a conhecida escassez de médicos no país, o que existe é uma fragilização da negociação daqueles que demandam o serviço.
Recomendar redução na concorrência para tratar eventuais abusos competitivos é uma solução pouco racional, especialmente porque as dosagens e seus efeitos colaterais são pouco estudadas. Decisões recentes do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) confirmam a rejeição do argumento do poder compensatório na defesa de conluios médicos.
Planos mais caros induzem uma redução de demanda pelos beneficiários mais jovens, saudáveis ou de menor renda. Sobrecarrega-se ainda mais o SUS e, no segmento privado, deteriora-se o perfil de risco da carteira e os custos das apólices, com pressão para novos reajustes nas mensalidades.
A maioria das cooperativas de especialidades condenadas por prática de cartel pelo Cade se localiza em capitais e no Distrito Federal. A elevação artificial dos honorários em poucas regiões desestimula o deslocamento de médicos a regiões menos densamente povoadas do país. Sob a sombra cooperativa, a oferta de especialistas pode se concentrar nos grandes centros urbanos sem forçar a queda de honorários.
Por mais polêmico que seja, ninguém discordaria do objetivo do programa Mais Médicos de assegurar uma oferta adequada de profissionais nas diferentes regiões. No entanto, um dos efeitos dos cartéis de especialidades é concentrar geograficamente a atuação dos especialistas, deixando as áreas recônditas carentes de médicos.
É difícil imaginar uma profissão mais nobre e importante para o bem-estar das pessoas do que a do médico. Nada mais justo do que reivindicar honorários e condições adequadas de trabalho.
É igualmente oportuno difundir a cultura da concorrência entre a classe médica. Isso, porém, não deve ser feito mediante a prática ilegal de cartéis, que beneficia algumas especialidades em detrimento do conjunto da sociedade.
O cartel é prejudicial à saúde.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Médicos e pacientes alinhando expectativas

A compreensão e o diálogo são o caminho para que agressões verbais e físicas não façam parte da sagrada relação médico-paciente

Ainda chocado com o atentado sofrido há algumas semanas por um dos mais ilustres urologistas do país, sinto-me compelido a fazer algumas reflexões sobre a relação médico-paciente. Na essência, a função do médico é sabiamente pautada por Hipócrates, que apregoava que fazer o bem para seus pacientes é o objetivo maior dos médicos. Já para o paciente, o médico é aquele que pode ajudá-lo a resolver seus problemas de saúde e, às vezes, até mesmo pessoais.
Idealisticamente, a relação entre ambos deveria ser pautada pela confiança e competência, gerando cumplicidade na busca da cura ou da atenuação do sofrimento. Contudo, nem sempre é assim que as coisas acontecem na medicina moderna.
Pelas características dos sistemas de saúde, tanto público, quanto privado, a lógica da relação vem sendo modificada: o indivíduo é cada vez menos paciente de um médico e cada vez mais de uma instituição ou de algum plano de saúde, o que gera enfraquecimento dos laços emocionais e afetivos que unem pacientes a seus médicos e vice-versa.
Como um agravante, em situações de maior complexidade o paciente é conduzido por um time de especialistas e outros profissionais da saúde, em função da diversificação do conhecimento cientifico. Talvez este seja um caminho sem volta, como um preço a se pagar pela busca da universalização do acesso às ações da saúde e aos custos crescentes do atendimento.
Apesar deste cenário desfavorável, amplia-se em todo o mundo a necessidade da relação médico-paciente ser mais aberta e transparente. É fundamental que o paciente entenda o que se passa com ele e, mais ainda, que participe do processo decisório quanto aos possíveis tratamentos para seu problema de saúde, algo que nem sempre ocorre.
Por outro lado, a compreensão de seu problema de saúde pode ser limitada em função de fatores diversos, tais como o receio de saber o que lhe acontece --mais comum em idosos--, o grau educacional, o nível intelectual e as condições emocionais, as quais podem, inclusive, gerar atitudes de negação quanto à doença e de agressividade contra aqueles que o tratam.
Cabe ao médico explicar com clareza a seu paciente o que lhe ocorre, procurando encontrar a maneira que melhor permita a compreensão de seu problema de saúde --afinal, como dizem, comunicação não é o que você fala, é o que o outro entende.
Portanto, o caminho a ser trilhado é claro: a busca do alinhamento das expectativas do paciente com as de seu médico. É preciso que se entenda e aceite que o resultado de um tratamento é pautado por situações nem sempre administráveis, tais como a doença em si, condições clínicas e idade do paciente, condições de atendimento e o próprio tratamento, afora competência, experiência e dedicação do médico.
Na verdade, grande parte dos processos de responsabilidade civil por "erro médico" decorre de compreensão inapropriada dos resultados alcançáveis e de possíveis complicações e sequelas do tratamento por parte do paciente ou de sua família.
Infelizmente, não é incomum que pacientes canalizem contra seus médicos insatisfações e frustrações decorrentes de suas doenças e seus tratamentos. Isso acontece na vida profissional de qualquer um de nós, expostos que estamos a nossas limitações e ao imponderável.
Contudo, alinhar as expectativas por meio da compreensão e do diálogo é o caminho para que agressões verbais e físicas não façam parte da sagrada relação médico-paciente, a fim de que o médico possa exercer dignamente sua função, honrando seu juramento hipocrático.

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Médicos precisam adotar cultura de transparência, diz Marty Makary

Hospitais precisam criar uma cultura de transparência para que médicos possam admitir erros e assumir responsabilidades, diz o britânico Marty Makary.
Professor da Universidade Johns Hopkins (EUA), ele é autor de "Unaccountable" ("Irresponsabilizável", 256 págs., US$ 19,20, Bloomsbury Press), best-seller sobre a falta de transparência na medicina. O médico foi um dos palestrantes do fórum "A Medicina do Amanhã", na semana passada, no hospital Albert Einstein, em São Paulo.
Em entrevista à Folha, Makary defendeu que se divulguem informações detalhadas sobre hospitais e médicos, mas disse que médicos não podem ser crucificados sistematicamente por seus erros. Leia abaixo a entrevista.
*
Folha - Por que a transparência é essencial à medicina?
Marty Makary - Não há boas técnicas para medir o desempenho de médicos e hospitais, e isso é frustrante para o público e para os médicos. A transparência nos dá pistas sobre o que deve ser melhorado no atendimento.
Em Nova York, nos anos 1980, um estudo comparou a taxa de mortalidade de cirurgias do coração em diferentes hospitais e constatou grande variação. Viu-se que muitas mortes poderiam ser evitadas com padronizações e técnicas mais rígidas.

O sr. diz que a variação de práticas é um problema na medicina. Por quê?
A mesma liberdade que médicos têm de mudar o tratamento para atender às especificidades de cada paciente -se ele é mais velho, ou se não quer um tratamento agressivo, por exemplo- pode levar o profissional a fazer escolhas terapêuticas por dinheiro ou por egoísmo.
Um médico pode ter taxas altas de infecção pós-cirurgia ou ser preso por dirigir bêbado e ainda continuar a exercer a profissão. Damos muita liberdade aos médicos sem o monitoramento devido. É um caminho difícil equilibrar a liberdade boa e essa que não é muito bem-vinda.

O sr. menciona a Clínica Mayo, do Minnesota (EUA), onde há uma troca muito grande de indicações entre médicos, como exemplo de excelência. É possível expandir esse modelo?
A própria Clínica Mayo tentou expandir o que faz na sua sede, sem sucesso. Há indicações de por que isso ocorreu. Médicos da sede se sentem no comando do hospital e são próximos da direção. Eles se sentem parte daquilo.
Na maioria dos hospitais, há uma péssima comunicação entre médicos e dirigentes. São comuns reclamações de médicos em relação a uma administração que não entende o que eles fazem.

O que fazer com erros graves, como objetos cirúrgicos deixados dentro dos pacientes. O médico deve ser demitido?
Um médico não deve ser mandado embora por um erro. Até os melhores médicos do mundo já cometeram erros. Mas precisamos criar uma cultura em que esses erros são comentados, corrigidos e evitados.

Como evitar que médicos escolham os tratamentos que vão lhe trazer mais lucro?
Primeiro, os médicos devem ganhar muito bem e serem recompensados. Segundo, pacientes devem ter o conhecimento de como o sistema funciona para ficarem atentos. Devem saber, por exemplo, que médicos que não encaminham para outros especialistas têm retorno financeiro com isso.

Ser excessivamente transparente não pode ser um problema para a confiança entre médicos, pacientes e hospitais?
Não, só temos a ganhar com isso. Mas a transparência e a medição da produtividade precisam ser bem feitas, com esquemas estatísticos que contemplem também as opiniões de médicos e de profissionais que serão avaliados. Lido com casos de alta complexidade que muitos médicos recusam. Um sistema de medição que compara taxas de mortalidade sem considerar o alto risco de pacientes pode penalizar profissionais que aceitam esse desafio. 

terça-feira, 12 de agosto de 2014

INDÚSTRIA FARMACÊUTICA CARECE DE INOVAÇÃO AO IGNORAR O DESENVOLVIMENTO DE NOVOS ANTIBIÓTICOS

Por EDUARDO PORTER
Há algo de claramente errado na inovação farmacêutica.
Apenas nos Estados Unidos, infecções resistentes a antibióticos afetam mais de 2 milhões de pessoas todos os anos e matam pelo menos 23 mil. A Organização Mundial da Saúde não tem como providenciar estatísticas globais, porque muitos países não divulgaram estimativas.
A OMS alertou que "uma era pós-antibióticos" pode estar no ar, quando "infecções comuns e ferimentos leves podem matar". Ainda assim, a indústria farmacêutica se mostra pouco entusiasmada em desenvolver drogas para o combate de tal calamidade.
Nenhum tipo importante de antibiótico foi desenvolvido desde o final da década de 1980, de acordo com a OMS. De 2011 a 2013, a FDA, órgão que monitora a indústria farmacêutica e de alimentos nos EUA, aprovou apenas três novas entidades moleculares para o combate a doenças bacterianas -o menor número desde a década de 1940.
No entanto, a indústria farmacêutica está excepcionalmente otimista sobre o futuro da inovação médica. Mikael Dolsten, médico que supervisiona o departamento global de pesquisa e desenvolvimento da Pfizer, destaca que, se o avanço nos 15 anos anteriores a 2010 parecia lento, era porque se demorou a entender como transformar descobertas como o mapa do genoma humano em novos medicamentos. Há uma grande quantidade de novas drogas na fila, para tratamentos específicos contra o câncer, vacinas ultramodernas e terapias para doenças difíceis, como a hepatite C.
No entanto, cada vez mais antibióticos estão saindo do mercado anualmente -ou porque as bactérias se tornaram resistentes a eles ou porque foram substituídos por medicamentos mais eficientes ou menos tóxicos. O arsenal contra infecções bacterianas encolheu para somente 96 diferentes moléculas no fim do ano passado, 17 a menos do que na virada do século.
Porém, muitas das grandes farmacêuticas decidiram abandonar essa linha de pesquisa. E poucas empresas estão entrando no segmento.
"Não tem havido incentivos suficientes para a indústria empreender 10 ou 15 anos de pesquisa", reconheceu Dolsten.
Os antibióticos não são obviamente lucrativos. Ao contrário dos medicamentos de combate ao câncer, que podem ser extremamente caros e necessários por um longo período, os antibióticos são mais baratos e prescritos apenas por períodos curtos.
Mas os antibióticos não são as únicas drogas ignoradas atualmente. Pesquisas sobre tratamentos contra o HIV/Aids também estão minguando, em grande parte porque os custos e o tempo necessários para o desenvolvimento aumentaram. As pesquisas sobre novas terapias cardiovasculares adotam, em sua maioria, drogas já conhecidas e menos arriscadas.
Doenças neuropsiquiátricas, como o Alzheimer e a depressão, são a principal causa de invalidez no mundo industrial. E a tendência é piorar. Os pesquisadores destacaram ainda a falta de investimentos para esses transtornos.
Como alternativa, farmacêuticas e empresas de biotecnologia estão apostando em terapias personalizadas -principalmente direcionadas a tipos específicos de câncer- e medicamentos para as chamadas doenças órfãs, que afetam uma número muito reduzido de pessoas. "Há mais pessoas estudando as doenças órfãs do que pessoas com essas doenças", brincou Michael Kinch, do Centro Yale para Descoberta Molecular. Dos novos medicamentos aprovados pela FDA em 2013, 70% eram drogas especiais -usadas por menos de 1% da população, de acordo com a empresa de gerenciamento de benefícios farmacêuticos Express Scripts.
O custo de desenvolvimento de uma nova droga disparou nas últimas três décadas. Dados da Eli Lilly indicam que a concepção de um medicamento até seu lançamento custava US$ 1,8 bilhão em 2010, processo que inclui o custoso desafio dos testes clínicos necessários para provar que a droga é ao mesmo tempo segura e mais eficaz do que as terapias existentes.
O desenvolvimento de medicamentos órfãos é mais barato, pois são aprovados em regime de urgência pela FDA. Considerações semelhantes atraíram companhias farmacêuticas para medicamentos biológicos mais modernos em detrimento de compostos tradicionais. Drogas de grandes marcas perdem 80% do mercado no prazo de um ano após o vencimento das patentes.
Patricia Danzon, da Universidade da Pensilvânia, recomenda recalibrar o ônus regulatório de modo a favorecer a pesquisa de medicamentos com potencial mais amplo.
Ao mesmo tempo, são necessários novos mecanismos para conter os preços. "Existe um mito de que nos EUA as forças de mercado estão atuando para controlar os preços", disse Danzon. Claramente não estão. E o mercado também não está produzindo a inovação necessária. NYT, 12.08.2014.
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terça-feira, 15 de julho de 2014

Quadros médicos

Já há algum tempo formou-se um consenso entre especialistas em saúde pública: é prioritário enfrentar o deficit de médicos nas periferias das metrópoles e em áreas distantes dos centros urbanos.

Se parece forçoso buscar redistribuir no território nacional os profissionais já existentes, é necessário, ao mesmo tempo, formar um número maior de pessoas aptas a praticar a medicina --o que demanda a abertura de novos cursos.
De um ponto de vista superficial, o governo Dilma Rousseff parece dedicar atenção ao tema. A atual gestão já liberou a criação de 44 cursos, o que equivale a 76% do total autorizado nos mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) e ultrapassa em 63% os aprovados na administração Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).
Um olhar um pouco mais aprofundado, contudo, basta para diagnosticar problemas nesse quadro. Especialistas manifestam, com razão, receios quanto à qualidade do ensino nessas instituições.
Fazer a saúde pública avançar vai muito além de multiplicar as vagas no ensino superior --uma das principais diretrizes do programa Mais Médicos, lançado com estardalhaço por Dilma no ano passado.
No campo educacional, é fundamental, por exemplo, proporcionar condições mínimas para que os formados tenham um bom nível.
Não se trata de aspecto trivial; mesmo em São Paulo os jovens profissionais ficam aquém do recomendável. No último exame do Conselho Regional de Medicina, 59% dos graduandos foram incapazes de acertar 60% das questões.
Reverter esse quadro depende de bons professores e de estrutura básica para a aprendizagem da medicina. Encaixam-se nessa categoria as recomendações de que todas as universidades disponham de hospitais-escola e de que as vagas de residência médica sejam ampliadas e se tornem obrigatórias.
Não basta, aliás, fazer intervenções na academia. Oferecer condições adequadas de trabalho é uma forma de incentivar médicos a buscar trabalho em zonas afastadas dos grandes centros.
Sem que contem com o atrativo dos resultados imediatos, contudo, é improvável que o governo se dedique a essas tarefas. Nesse ritmo, o país até poderá formar mais médicos, mas poucas pessoas desejarão se tratar com a maioria deles. Folha, 15.07.2014

terça-feira, 6 de maio de 2014

HÉLIO SCHWARTSMAN: A automedicação é a vilã?


SÃO PAULO - Pesquisa revela que 76% dos brasileiros recorrem à automedicação. Ainda mais temerário, 32% deles ajustam a dose da droga por conta própria. Ambas as práticas envolvem riscos. É preciso, porém, cuidado para não atirar a criança junto com a água do banho.
Antes de demonizar a automedicação e pintá-la como grande vilã da saúde pública, deve-se ter em mente que, dentro de certos limites, ela é um fenômeno desejável. A OMS, por exemplo, a descreve como "necessária" e com função complementar a todo sistema de saúde.
O importante aqui é não perder de vista a totalidade do espaço amostral. Se olharmos só para as intoxicações involuntárias e óbitos daí decorrentes, fica mesmo parecendo que a automedicação é um mal a eliminar. Mas é preciso considerar também que a esmagadora maioria das doenças que afetam a população é autolimitada, não requerendo mais do que o alívio dos sintomas.
Fazer com que a legião de pessoas que são diariamente acometidas por quadros virais menores e dores de cabeça benignas passe por um médico antes de ter acesso a um analgésico levaria os já saturados sistemas público e privado de atendimento ao colapso. A última coisa de que o SUS necessita é uma explosão da demanda motivada por casos triviais.
O desafio diante das autoridades é encontrar o ponto ótimo na regulação que não onere demais o sistema com consultas desnecessárias nem estimule voos muito arriscados na automedicação. Como é impossível dar conta da complexidade por meio de regras lineares, sempre haverá casos para os quais a norma se revelará ou fraca demais, facilitando a ocorrência de intoxicações evitáveis, por exemplo, ou rígida em excesso, fazendo com que pacientes que poderiam beneficiar-se de certos remédios fiquem sem acesso a eles.
A automedicação é indubitavelmente um hábito perigoso. Mas estar vivo o é ainda mais.
Folha, 06.05.2014

quinta-feira, 24 de abril de 2014

DAVID UIP: A emenda pior do que o soneto

A municipalização do SUS é correta, mas sua execução, na prática, é um erro. A conta da saúde para as prefeituras está cada vez mais indigesta
Quando se tenta consertar algo e o resultado prejudica ainda mais o problema, diz-se que a emenda ficou pior do que o soneto. Na saúde pública brasileira, temos acompanhado episódios que remetem ao ditado popular, causando preocupações e incertezas.
Os Ministérios da Saúde e da Educação têm incentivado municípios a construírem faculdades de medicina, não raro em locais sem nenhum respaldo de hospitais e de ambulatórios, abrindo-se mão do necessário perfil de formação acadêmica para qualificar em nível de graduação e pós-graduação os futuros profissionais. Além de exigir investimento, a situação aumenta a pressão financeira para custear o funcionamento dessas estruturas, onerando o gestor local e tentando envolver o Estado.
A municipalização do SUS (Sistema Único de Saúde) é correta, mas sua execução, na prática, é um erro. Os municípios deveriam estar se preocupando com programas de prevenção e promoção da saúde, com o reforço da atenção primária e serviços essenciais, capazes de solucionar 80% dos problemas de saúde da população. Diversas administrações municipais, porém, constroem hospitais que terão dificuldades para manter posteriormente e ainda são obrigadas a bancar os custos do funcionamento de unidades de pronto-atendimento.
Como consequência, a conta da saúde para as prefeituras está cada vez mais indigesta. Para se ter uma ideia, em 2000, o Ministério da Saúde era responsável por 58,5% das despesas proporcionais com saúde, enquanto os Estados respondiam por 20,3% e os municípios, 21,2%. Dez anos depois, a participação da União no financiamento da saúde caiu para 44,8%, a dos Estados subiu para 26,9% e dos municípios, 28,3%.
No Estado de São Paulo, a disparidade é ainda maior em relação à média nacional. Em 2000, os repasses federais para a saúde representaram 39%. Governo do Estado e municípios responderam por 29% e 32%, respectivamente. Em 2010, a União repassou 27,8% do total, enquanto Estado respondeu por 31,1% e os municípios paulistas responderam por 41,1%.
Além de equacionar o conhecido problema do financiamento, é fundamental reorganizar o sistema, que, embora gigante e com números que impressionam na assistência, hoje está fragmentado e sem rumo.
Para proporcionar maior eficiência e resolutividade aos hospitais públicos paulistas, especialmente no que se refere às Santas Casas e hospitais filantrópicos, a Secretaria de Estado da Saúde, além de fazer um aporte extra-SUS de R$ 535 milhões, o dobro dos anos anteriores, está reclassificando os serviços hospitalares conforme sua vocação e perfil. Esse modelo deverá ser estendido aos demais serviços hospitalares, municipais e estaduais.
Os hospitais de apoio, aqueles menores, receberão recursos do governo para garantir assistência a casos mais simples. A média complexidade deverá estar assegurada nos serviços classificados como estratégicos, que vão receber 40% a mais do que o SUS federal paga. E os hospitais estruturantes, que terão do Estado 70% a mais, deverão se dedicar exclusivamente à alta complexidade, como cirurgias cardíacas, transplantes, neurocirurgia e tratamento oncológico, entre outros.
A reorganização do sistema passa, ainda, por dar sentido e uso a 168 hospitais com até 50 leitos e por integrar 88 municípios que possuem um único equipamento de saúde, vital para o atendimento da população local, mas desconectado da malha assistencial.
Não há dúvida de que o SUS, umas das grandes conquistas do povo brasileiro, responsável por inúmeras ações de sucesso, deve ser repaginado com criatividade e inteligência. DAVID UIP, 62, médico infectologista, é secretário de Estado da Saúde de São Paulo.
Folha, 24.04.2014

terça-feira, 22 de abril de 2014

Atraso clínico

Um dilema ronda o Estado, o dilema do controle.
Uma função precípua do poder público é fiscalizar a atuação de agentes privados, sobretudo aquelas atividades capazes de provocar danos irreversíveis. Por exemplo, a construção de uma hidrelétrica, o teste de uma droga nova.
Para cumprir esse imperativo, autoridades se valem de ferramentas burocráticas. Exigem que os interessados apresentem estudos de impacto, sigam protocolos específicos, exibam certificações e se submetam ao crivo de especialistas reunidos em agências e conselhos técnicos.
Não é fácil, no entanto, acertar o nível ótimo de controle. Se a burocracia é relapsa, a segurança fica comprometida; se aperta muito o cerco, atividades legítimas e desejadas são inibidas.
No Brasil, a burocracia não raro consegue a proeza de cair nos dois extremos. Um bom exemplo do pior dos mundos está o campo dos ensaios clínicos, isto é, do teste de remédios novos.
Tal mercado movimenta, globalmente, cerca de US$ 120 bilhões anuais. O Brasil recebe 2,32% disso (15ª colocação), o que contrasta com o fato de ser o sétimo maior consumidor de medicamentos.
O Brasil teria condições de se dar bem nesse segmento. Conta com pessoal qualificado, centros médicos de excelência e uma população grande e com muita variação genética.
A razão central para o desempenho débil é a lentidão da burocracia para conceder licenças de pesquisa. Por aqui, além da ineficiência basal da máquina burocrática, ainda subsiste uma cultura paranoica diante dos grandes laboratórios, que levou a uma nada razoável duplicação de processos.
As autorizações precisam passar pelo CEP (Conselho de Ética em Pesquisa), normalmente ligado ao próprio centro, que as encaminha à Conep (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa). Em paralelo, aspectos de segurança são avaliados pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
Resultado: o tempo médio para obter uma autorização é duas a três vezes maior que o de países como Estados Unidos e nações da União Europeia, cujos níveis de segurança são provavelmente melhores que os brasileiros.
A lista de prejudicados pelo marasmo burocrático não é pequena. Perdem a economia, que deixa de abocanhar uma fatia maior desse mercado, a ciência nacional, alijada de um nicho relevante, e pacientes individuais, que poderiam ter acesso mais rápido e gratuito a novos tratamentos.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

MARK WILSON: Governo não deve gastar com remédios sem evidência


OPINIÃO É DE PRESIDENTE DE REDE QUE AVALIOU O TAMIFLU
CLÁUDIA COLLUCCIDE SÃO PAULO
A aplicação da medicina baseada em evidências está sendo retardada porque médicos e estabelecimentos de saúde em muitos países, inclusive o Brasil, não querem ver suas experiências e julgamentos questionados.
É o que diz o inglês Mark Wilson, presidente da Cochrane Collaboration, uma rede de cientistas independentes que investiga a efetividade de remédios e que, na última semana, provocou polêmica internacional envolvendo o antiviral Tamiflu.
Uma revisão de estudos da Cochrane concluiu que a droga, indicada pelas OMS (Organização Mundial da Saúde), não evita a disseminação da gripe nem diminui complicações. Só reduz a persistência dos sintomas de sete dias para 6,3 dias em adultos.
Neste ano, a Cochrane desenvolverá uma lista de 200 assuntos prioritários para ajudar os formuladores de políticas de saúde, médicos e pesquisadores a tomar decisões com base na medicina de evidências. A seguir, trechos da entrevista à Folha.
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Folha - Uma revisão da Cochrane demonstrou a baixa eficácia do Tamiflu, mas a OMS considera o remédio essencial. Isso não provoca uma certa confusão?

Mark Wilson - A Cochrane chegou às suas conclusões sobre os benefícios e malefícios do Tamiflu com base em um esforço extraordinário de análise do nosso time. A revisão foi baseada em dados que estão disponíveis para quem quiser avaliá-los e fazer sua própria análise. Esperamos que a OMS reconsidere a sua orientação sobre o uso de Tamiflu com base nessa nossa última revisão.

Como a Cochrane quer reduzir o fosso que existe entre as pessoas comuns e as evidências em saúde?
Desenvolvemos várias ferramentas que ajudam os consumidores de saúde a ter acesso às evidências da Cochrane para que tomem decisões informadas sobre a sua saúde. Uma deles é o site http://summaries.cochrane.org, disponível em português.
Cada uma das 5.300 revisões da Cochrane tem um resumo que ajuda os leitores comuns a entender o conteúdo e as conclusões da revisão, e estamos desenvolvendo novas maneiras de fazer as implicações das opiniões mais claras e inteligíveis.

Qual é o principal desafio do estabelecimento da cultura da saúde baseada em evidências nos países em desenvolvimento, como o Brasil?
Até pouco tempo atrás, as pessoas tinham de fazer julgamentos com base em pouca evidência. É preciso tempo para as pessoas assimilarem esse novo conhecimento que sabemos ser verdadeiro. Mas o processo é demorado porque médicos e estabelecimentos de saúde em muitos países, incluindo o Brasil, não querem ver sua experiência e julgamento questionados por novas provas.
Existe uma cultura e prática da medicina baseada em eminência ("faça isso porque estou dizendo que é bom") em vez da medicina baseada em evidências ("faça isso porque está comprovado que funciona"). A melhor prática médica combina experiência e conhecimento do que está provado que funciona.

Não há evidência científica de que a homeopatia funcione, mas a especialidade é reconhecida pelos conselhos médicos no Brasil e promovida pelo Ministério da Saúde. Qual é a sua opinião?
Eu não posso falar sobre o julgamento do conselho de medicina no Brasil, mas as revisões da Cochrane sobre o assunto sugerem que não há evidências de que a homeopatia é mais eficaz do que tomar um placebo.

Qual é o peso da indústria farmacêutica na promoção da cultura do cuidado de saúde baseado em evidências? Como lutar contra essa influência?
A rede Cochrane é uma organização totalmente independente, e essa é uma das razões pelas quais consumidores, médicos e governos confiam em nós.
A indústria farmacêutica trouxe grandes avanços nos cuidados à saúde por meio de medicamentos e equipamentos que desenvolveu, mas precisamos lembrar que a principal motivação dela é ganhar dinheiro e se manter no mercado.
Está ficando mais difícil e mais caro desenvolver novas drogas que ofereçam benefícios adicionais comprovados em relação aos remédios já disponíveis. Quando há dados que mostram que novas drogas não oferecem mais benefícios do que malefícios ou que não oferecem benefício extra, há incentivo para que as empresas não compartilhem essas informações. A Cochrane acredita que sistemas e regulações devem existir para nos proteger disso.

Sistemas de saúde em todo o mundo estão enfrentando dificuldades quanto ao financiamento. A adoção da medicina baseada em evidências é uma forma de reduzir custos?
Governos e outros responsáveis pela saúde deveriam usar as evidências da Cochrane para oferecer cuidados que tenham melhor custo-benefício. Por que desperdiçar dinheiro em medicamentos, equipamentos e processos que não funcionam? Pacientes, médicos e governos deveriam se perguntar como eles sabem que determinada droga funciona e se ela tem um bom custo-benefício. Folha, 17.04.2014.
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Sinais trocados na saúde: Governo e parlamentares negam mais recursos ao SUS, mas entregam a ANS a um setor que assiste, mal, apenas uma parcela da população

Lugar de conflitos de interesse, a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) se vê diante de mais um escândalo.
Após a queda de um diretor da agência por ter omitido que trabalhou para empresas de planos de saúde, a presidente Dilma Rousseff indicou a posto semelhante o atual presidente da CNS (Confederação Nacional de Saúde), que aguarda sabatina no Senado.
A entidade representa hospitais, clínicas, laboratórios, operadoras de planos de saúde, e o indicado foi, no passado, presidente de empresa que atua na saúde suplementar.
Mais grave é a posição do possível novo diretor, revelada neste mesmo espaço daFolha, em 2010: "Questionamos no Supremo Tribunal Federal (STF) a constitucionalidade do artigo 32 da lei dos planos de saúde (lei nº 9.656/98), que prevê o ressarcimento ao SUS caso o beneficiário do plano seja atendido pelo sistema público".
Pela lei, cabe à ANS identificar os pacientes atendidos no SUS, notificar as empresas sobre os valores a serem ressarcidos e cobrar a devolução. Em uma única reunião, em março de 2014, a diretoria da ANS deliberou sobre 99 recursos de planos de saúde contra o ressarcimento ao SUS.
O conflito anunciado envolve tema sensível à ANS. Já em 2009, o Tribunal de Contas da União alertou que a agência dá prejuízo aos cofres públicos, pois não identifica corretamente o que deve ser ressarcido e é lenta para realizar as cobranças, jogando os processos à prescrição.
Por isso, o volume do ressarcimento é insignificante. De 2001 a 2013, retornaram ao SUS apenas R$ 447 milhões. O SUS realiza por ano 11 milhões de internações, das quais pelo menos 200 mil são de clientes de planos de saúde, custo que chega a R$ 1 bilhão, sem contar os procedimentos ambulatoriais que, inexplicavelmente, não são processados pela ANS.
A Câmara dos Deputados e o Senado acabaram de aprovar redução do valor das multas dos planos de saúde, um incentivo às restrições de cobertura, infração mais cometida, piorando a situação atual, em que os pagamentos não chegam a 20% dos valores das sanções timidamente aplicadas pela ANS.
Em 2013, com o apoio do governo, a medida provisória nº 619 já havia livrado os planos de cobrança bilionária do PIS e Cofins. Tal vantagem tributária soma-se à renúncia fiscal no cálculo de Imposto de Renda de pessoas físicas e jurídicas, que sempre beneficiou os planos de saúde.
E, ainda, passaram a ganhar do BNDES linhas de crédito para ampliação de suas redes hospitalares. A ANS quer permitir que deem de garantia aos empréstimos a chamada reserva técnica --fundo obrigatório por lei para que, em caso de falência, as operadoras não deixem na mão os consumidores.
O subfinanciamento público é o maior algoz da saúde no Brasil. O gasto per capita do SUS, para toda a população, é de R$ 45 por mês. A receita dos planos de saúde chega a R$ 160 por pessoa, o que rendeu às operadoras R$ 93 bilhões em 2013.
Governo e parlamentares negam mais recursos ao SUS, sistema de todos os brasileiros, mas concedem incentivos econômicos e entregam a agência reguladora a um setor que assiste --e mal-- apenas uma parcela da população.
Candidatos sempre defendem o SUS. Mas, na hora da doença, nunca querem se tratar nos mesmos locais onde tentarão ser atendidos os eleitores que desejam conquistar. E, na campanha, terão dinheiro farto dos planos privados.
A população que foi às ruas exigir serviços públicos de saúde de qualidade, o povo que aponta a saúde como o maior problema do Brasil talvez tenha percebido que os sinais estão mesmo trocados.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Hospital da Clínicas: Um hospital de superlativos

O Hospital das Clínicas buscará parceria pioneira com a iniciativa privada que permitirá ampliar ainda mais a assistência gratuita do SUS
Daqui a 30 anos, quando o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP completar seu primeiro centenário, o cenário da saúde pública terá certamente se transformado, seguindo o dinamismo inerente ao SUS (Sistema Único de Saúde).
Hoje, as carências são conhecidas. Subfinanciamento, falta de resolutividade na atenção primária, hospitais e ambulatórios que não cumprem efetivamente seu papel no atendimento secundário. São fatores que levam invariavelmente os hospitais de ensino, com assistência terciária, a concentrar uma demanda excessiva.
O HC-FMUSP, que completa 70 anos de existência no próximo 19 de abril, é procurado por pacientes de todo o Brasil em razão de sua qualidade e excelência assistencial. Trata-se de uma população que conhece e, principalmente, confia no hospital. Muitas vezes, só nele.
Maior complexo hospitalar da América Latina, o HC desde cedo se tornou referência nacional em assistência, ensino e pesquisa. Uma trajetória que pode ser traduzida nas histórias de pacientes, médicos, residentes e colaboradores. E que, ao mesmo tempo em que nos orgulha, nos traz a enorme responsabilidade de seguirmos adiante, com ambição em relação ao futuro e zelo para com o nosso passado.
Dentro da rotina do complexo nos acostumamos com seus números superlativos. São cerca de 250 mil pacientes por mês circulando nos oito institutos do HC --entre eles o fundador Instituto Central e, mais recentemente, o Instituto do Câncer do Estado de São Paulo Octavio Frias de Oliveira-- e mais de 20 mil colaboradores se dedicando dia e noite para que o atendimento ocorra sempre da melhor maneira.
Anualmente, são feitas aproximadamente 1,7 milhão de consultas ambulatoriais, 320 mil atendimentos de emergência, 40 mil cirurgias e mais de 1 milhão de exames de diagnóstico por imagem.
Paralelamente à assistência, o hospital-escola da FMUSP é também responsável por formar muitos dos melhores quadros da medicina nacional. Nossos alunos e residentes ajudam a disseminar o conhecimento produzido no mundo acadêmico em unidades de saúde de todo o país. As pesquisas desenvolvidas no HC ajudam a levar a medicina para patamares nem sequer imaginados há poucos anos.
Os desafios, contudo, são igualmente enormes. O próprio HC não pode nem deve se acomodar como instituição. E não irá. Assim, na esteira das comemorações de suas sete décadas, lançamos o projeto HC 70+30, antecipando o futuro.
Focando o acolhimento diferenciado e a construção de novas áreas --algumas já em andamento, como o instituto de álcool e drogas e o novo hospital de Suzano--, esse projeto também prevê a reurbanização do complexo, em um plano audacioso que, quando concluído, oferecerá aos pacientes e colaboradores um novo espaço de convivência e circulação, mais bonito e acessível.
O Hospital das Clínicas buscará parceria pioneira com a iniciativa privada que, acredito, irá se tornar um exemplo para futuros empreendimentos dessa magnitude e que permitirá ampliar e aprimorar ainda mais a assistência gratuita aos usuários do SUS.
Atualmente, mais de R$ 220 milhões já estão sendo investidos em novas obras para o complexo pelo governo do Estado de São Paulo.
Nessa data, quero homenagear todos aqueles que ajudaram a construir o Hospital das Clínicas da FMUSP. Desde os operários que deram início às primeiras obras, em 1938, passando por cada professor, médico, enfermeiro, cada colaborador, cada paciente e cada voluntário. E quero brindar àqueles que seguirão nessa jornada em defesa de um Hospital das Clínicas que, seja aos 70, aos 90 ou aos 100, sempre estará à frente do seu tempo.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

ODED GRAJEW: Crime contra a saúde e o bolso


Nenhum governo até hoje conseguiu colocar o interesse econômico e a saúde dos brasileiros acima do lucro da indústria farmacêutica
Estima-se que os brasileiros gastem desnecessariamente cerca de R$ 13 bilhões por ano com medicamentos! Você certamente já se confrontou com a seguinte situação: foi a uma farmácia para comprar um certo número de pílulas receitadas por seu médico e teve que levar uma quantidade maior por causa da embalagem oferecida pelo fabricante.
Os remédios armazenados na casa das pessoas oferecem um risco à saúde da população: podem ser ingeridos por crianças ou reutilizados inadvertidamente numa outra ocasião com data de validade já vencida, provocando graves intoxicações. Além disso, são frequentes os episódios em que, por falta de recursos, muitos compram uma parte do medicamento prescrito e, ao primeiro sinal de melhora, interrompem o tratamento, provocando inevitáveis danos à saúde.
Justamente para evitar problemas como esses, os países desenvolvidos e muitos outros obrigam os fabricantes e as farmácias a venderem remédios fracionados, isto é, a comercializarem o número exato de pílulas receitadas. Se o paciente apresenta uma receita para tomar três doses de antibióticos diárias durante cinco dias, a farmácia lhe vende 15 comprimidos. Todas as multinacionais instaladas no Brasil agem dessa forma em muitos países, inclusive nos seus de origem.
Durante um ano, em 2003, fui assessor especial do ex-presidente Lula. Apresentei a ele a proposta de introduzir no Brasil a obrigatoriedade do remédio fracionado, mostrando as enormes vantagens econômicas e de saúde para os brasileiros.
Lula, então, me deu razão e chegou a citar as palavras de sua mulher, Marisa, que se queixava das inúmeras caixas de remédio não utilizadas guardadas no armário do banheiro. Depois disso, o fracionamento passou a ser facultativo, mas não obrigatório.
Ao deixar o governo e reassumir a presidência do Instituto Ethos, tentei levar adiante a campanha pela introdução do remédio fracionado no Brasil. A indústria farmacêutica reagiu violentamente ameaçando retirar todos os fabricantes de remédios do quadro associativo do Ethos. Sugeri que fizéssemos uma coletiva de imprensa explicando os motivos dessa saída.
Em seguida, telefonei para o presidente da fundação Novartis na Suíça relatando o caso e perguntando se o discurso da responsabilidade social da empresa era realmente sério --isso porque a Novartis e outras multinacionais oferecem remédios fracionados em outros países, mas não o fazem no Brasil.
As ameaças contra o Instituto Ethos cessaram, mas o forte, rico e poderoso lobby da indústria farmacêutica contribuiu com mais de R$ 12 milhões nas eleições de 2010 e conseguiu impedir, até o momento, a obrigatoriedade do remédio fracionado no Brasil.
Nenhum dos governos até agora conseguiu enfrentar esse desafio de colocar o interesse econômico e a saúde dos brasileiros acima do lucro da indústria farmacêutica brasileira --que, aliás, é um dos maiores do mundo. Espero que este artigo sensibilize o governo e a sociedade para agirem contra esse crime hediondo que atinge diretamente o bolso e a saúde dos brasileiros.
Folha, 09.04.2014

terça-feira, 1 de abril de 2014

SAÚDE PARTIDA

País já gasta 8,9% do PIB com atendimento médico, mas de forma ineficiente; redução de desperdícios implica articular sistemas público e privado
O sistema de saúde do Brasil está doente. Há algo de errado com um serviço --ou serviços, porque vigora no país uma esquizofrênica partição entre o setor público e o privado-- avaliado por 62% da população como ruim ou péssimo.
Esse julgamento ensombrecedor se destaca na pesquisa Datafolha apresentada no Fórum a Saúde do Brasil, seminário da Folha realizado na semana passada. A saúde é o principal problema do país para 45% dos entrevistados.
É certo que o fulcro da ineficiência está no atendimento público do SUS, o Sistema Único de Saúde idealizado na Constituição de 1988. Dele dependem 73% dos brasileiros. Destes, mais da metade (53%) o considera ruim ou péssimo.
Os planos particulares gozam de avaliação mais favorável, com 44% de ótimo e bom. Mas a categoria regular tem a preferência de 42% dos conveniados. O salto no número de usuários, de 32,1 milhões para 50,3 milhões em dez anos, já parece afetar a qualidade.
O cerne dos problemas está na desigualdade do sistema dual. O SUS atende quase três quartos da população, mas se sustenta com 46% das despesas totais do país em saúde (8,9% do PIB, o que em 2013 equivaleria a cerca de R$ 430 bilhões). O setor privado (famílias e empresas) realiza 54% dos gastos e serve a 27% dos brasileiros.
A reação automática diante do subfinanciamento do SUS tem sido a defesa de mais investimento público, o que implica um impraticável aumento de arrecadação. Antes disso, há muita coisa por fazer.
Prossegue sem solução eficaz a questão do ressarcimento do SUS por serviços complexos e caros que presta a pacientes de planos privados. O certo seria criar um sistema automático de transferência de fundos, com base num cadastro central de conveniados.
Há, também, muita ineficiência e desperdício no SUS, como já apontaram estudos até do Banco Mundial. É preciso tapar esses drenos antes de despejar mais recursos do contribuinte no sistema.
Urge, ainda, impor limites --seja por meio de regulamentação, seja por meio de especialização de magistrados-- à proliferação de decisões judiciais que obrigam o SUS a custear tratamentos não homologados por ele, não raro em favor de pacientes particulares. Só a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo teve com isso um gasto adicional de R$ 905 milhões em 2013.
Por fim, há que enfrentar a desarticulação entre os serviços públicos e privados. O segundo resulta tão caro porque concentra seu atendimento em hospitais e exames complexos, inexistindo na prática um trabalho preventivo, para promover a saúde e não só para curar a doença.
O Programa de Saúde da Família, que partiu de 4.000 equipes em 1994 para 33 mil em 2012, deveria ser o foco dessa rearticulação. Seria preciso encontrar uma forma de integrar pacientes privados nesse sistema de atenção básica e remunerar o SUS por isso.
Não é só de uma boa dose de inovação tecnológica que a saúde do Brasil precisa para curar-se, mas também de inovação institucional. EDITORIAIS. editoriais@uol.com.br
Folha, 01.04.2014

quarta-feira, 12 de março de 2014

Calamidades indígenas na saúde

EDITORIAIS - editoriais@uol.com.br
A saúde representa um dos aspectos mais desastrosos do contato do "homem branco" com os povos indígenas americanos. Desde os tempos coloniais, são frequentes as mortes relacionadas a doenças simples, como gripe e catapora.
Diversas etnias foram dizimadas em decorrência de enfermidades. Hoje, muitas das que sobreviveram a esse primeiro momento sofrem com condições miseráveis, agravadas por mudanças bruscas dos hábitos alimentares.
Reportagem da BBC Brasil feita com base em registros do Sistema Único de Saúde (SUS) mostrou que, desde 2008, 419 crianças indígenas morreram por desnutrição no país. O montante equivale a 55% das mortes por desnutrição infantil em todo o Brasil no período, embora os índios sejam apenas 0,4% da população nacional.
A situação é particularmente preocupante porque, em outubro de 2010, diante da necessidade de oferecer tratamento específico para cada uma das diferentes etnias, o governo criou a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). O órgão mantém cerca de 60 casas sanitárias que, ao que tudo indica, estão longe de funcionar bem.
Na unidade de Campinópolis (MT), por exemplo, colchões mofados espalhados num espaço inadequado abrigavam xavantes doentes --trata-se da etnia com mais mortes por desnutrição infantil.
Como se o cenário não fosse já calamitoso, a Controladoria-Geral da União (CGU) identificou gastos indevidos de recursos destinados à saúde das comunidades indígenas. Conforme esta Folha apontou no último sábado, as irregularidades, cometidas de 2010 a 2012, atingiram R$ 6,5 milhões.
Os problemas incluem duplicidade no pagamento de funcionários, locação irregular de veículos e remuneração por viagens que simplesmente não ocorreram.
Houve, além disso, ágio de até 8.691% na compra de remédios. Em um dos casos, 60 comprimidos de um medicamento foram adquiridos por R$ 98 com cartão corporativo, mas ficavam por R$ 1,10 mediante licitação.
É lamentável que um órgão criado há apenas quatro anos apresente tantos vícios. A Secretaria Especial de Saúde Indígena foi concebida para cuidar de um segmento populacional vulnerável, e não para ajudar a desviar recursos públicos.
Folha, 12.03.2014
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segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Mais médicos (de saúde da família): Se o atual governo federal tivesse dado a prioridade devida ao Programa Saúde da Família, o Brasil não precisaria importar médicos

BARJAS NEGRI
TENDÊNCIAS/DEBATES
A fim de ampliar e melhorar a qualidade do atendimento da atenção básica em saúde, o Ministério da Saúde criou em 1994 o Programa Saúde da Família (PSF), em parceria com os municípios.
Cada equipe do PSF é composta, no mínimo, por um médico generalista, um enfermeiro, um auxiliar ou técnico de enfermagem e seis agentes comunitários de saúde. Posteriormente, acrescentou-se as equipes de saúde bucal.
No primeiro ano, foram implantadas 328 equipes, em 55 municípios. Pela sua importância para a atenção básica na saúde, o PSF foi ampliado notavelmente no governo Fernando Henrique Cardoso. No período em que foi ministro da Saúde, José Serra deu apoio, prioridade e recursos para que os municípios implantassem novas equipes, que cresceram dez vezes em cinco anos.
Em 2002, último ano da gestão FHC, quando eu já estava no comando do ministério, o PSF acumulara 16,7 mil equipes, que acompanhavam 55 milhões de pessoas, em 4.200 municípios. Esse exército de profissionais de saúde foi decisivo para derrubar a mortalidade infantil, ampliar a cobertura das vacinações e, em muitos casos, proporcionar a primeira consulta médica ou odontológica de milhões de pessoas.
O governo Lula deu sequência ao programa, chegando em 2010 a 31,6 mil equipes em 5.300 municípios. No governo Dilma Rousseff, esperava-se que o PSF recebesse mais apoio e recursos financeiros para continuar crescendo, mas não foi isso o que aconteceu. Em três anos, o PSF ganhou apenas 3.000 novas equipes, um aumento pífio.
A média anual de implantação de equipes do PSF no governo FHC foi de 2.046. No de Lula baixou para 1.870 e, no de Dilma, caiu ainda mais para 1.018, evidenciando o enorme retrocesso. Mantida a média dos governos anteriores, o PSF deveria ter 40 mil equipes em 2014, o que, ao que tudo indica, não irá ocorrer.
Incapaz de dar respostas corretas a essa fragilidade, o Ministério da Saúde, sob o comando de Alexandre Padilha, criou um programa-tampão denominado Mais Médicos, com a meta ambiciosa de contratar 13 mil médicos estrangeiros e nacionais, em detrimento ao programa estratégico de saúde da família que, segundo Adib Jatene, deveria atingir 52 mil equipes.
Até agora, foram contratados 6.600 médicos, 80% dos quais cubanos que, em algum momento, voltarão ao seu país de origem. São trabalhadores temporários. Ou seja, em vez de uma ação de caráter permanente em relação às equipes de saúde da família, compostas por nove profissionais, optou-se por um inepto remendo de um médico temporário estrangeiro.
Se o atual governo federal tivesse dado a prioridade devida ao PSF, com mais recursos aos municípios e incentivos permanentes à formação de mais médicos generalistas, o Brasil não precisaria importar médicos, e a saúde pública não seria tão mal avaliada pela população brasileira.
É precisamente a falta de profissionais da saúde voltados à atenção básica das famílias que tem sobrecarregado hospitais e serviços de diagnóstico e tratamento, bem como as redes de urgência e emergência nos municípios. Ao completar 20 anos, o PSF merecia mais.